Mostrando postagens com marcador complicações cirúrgicas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador complicações cirúrgicas. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Mulheres transexuais e o processo transexualizador: experiências de sujeição, padecimento e prazer na adequação do corpo

Analídia Rodolpho Petry
Revista Gaúcha de Enfermagem
2015 jun;36(2):70-5


Resumo: Objetivo: Neste artigo, busca-se compreender as experiências de mulheres transexuais em relação à hormonioterapia e à cirurgia de redesignação sexual que constituem o Processo Transexualizador. Método: Trata-se de uma pesquisa qualitativa inserida no campo dos estudos culturais e de gênero. A coleta de dados utilizou entrevistas narrativas, realizadas em 2010 e 2011 com sete mulheres transexuais que se submeteram ao Processo Transexualizador há, pelo menos, dois anos. Os dados foram submetidos à análise temática. Resultados: Os resultados mostram que os processos de transformação para a construção do corpo feminino envolvem adequar o comportamento, postura, empostação da voz, uso de hormônios, dilatação do canal vaginal e complicações cirúrgicas. Tais processos sujeitam o corpo a se construir conforme idealizado para adequar-se a sua identidade de gênero, infringindo-lhe prazeres e padecimentos. Conclusão: Conclui-se que a discussão que envolve o Processo Transexualizador traz subsídios para a enfermagem acerca das modificações corporais vivenciadas pelas mulheres transexuais.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O que não deu certo para elas

Fabiana Moraes
1 de abril de 2012

Faz um ano que Juliana Amorim, 26 anos, saiu do Hospital das Clínicas (HC) após se submeter a cirurgia de redesignação sexual. Estava certa que seu cotidiano se ajustaria ao corpo que finalmente traduzia por fora aquilo o que ela era por dentro. Doze meses depois, Juliana passa por constrangimentos parecidos com aqueles que enfrentava antes de iniciar o demorado processo de transexualização: tem vergonha do novo corpo, está depressiva e não fica nua na frente do próprio marido. Seu canal vaginal, aberto quando transexuais masculinos passam para o feminino, está fechado, com o novo sexo cumprindo uma função meramente estética. Ela procurou há meses o HC para resolver o problema e teve uma péssima notícia: os procedimentos de transexualização, assim como aqueles que podem ocorrer após a cirurgia, foram suspensos. Duas outras transexuais enfrentam o mesmo problema.

O colamento das paredes (estenose) da neovagina de Juliana foi provocado pela própria paciente. "“Percebi que o canal não foi aberto totalmente no meio, e mais à direita. Quando eu movimentava a perna, o molde era expulso. Sentia dor para recolocar, sentia dor quando fazia movimentos simples. Deixei fechar para que reabrissem da maneira correta".” O molde ao qual ela se refere, um pênis de borracha com aproximadamente 12 centímetros, deve ser mantido dentro do canal para que a neovagina não se feche durante a cicatrização. Além de Juliana, outras pacientes estão com o canal fechado. Joicy Melo, 51, fez duas reaberturas para dilatar as paredes vaginais, sem sucesso. A agricultora e cabeleireira também foi informada que não há, atualmente, um médico para realizar a nova cirurgia. Outra paciente já operada que sofre de estenose, segundo o HC, é a cabeleireira Cynthia Lourenço, operada em 2006.

Segundo nota enviada pelo hospital, os procedimentos foram suspensos por conta da aposentadoria, no ano passado, do cirurgião ginecologista Sabino Pinho, responsável por todas as 22 pacientes que realizaram a redesignação sexual no HC. A retomada da marcação de consulta aconteceria, diz a nota, na segunda quinzena de abril. Apesar disso, Sabino Pinho opera, no dia 23 de abril, a transexual Graziele dos Santos, 24. A intervenção comandada pelo cirurgião explica-se pelo fato de o médico acompanhar a paciente há mais de dois anos. "“Me comprometi com ela"”, diz o médico. Seguindo a mesma lógica, resta saber por que mulheres que necessitam de intervenções de porte bem menor, a exemplo de Juliana, Cynthia e Joicy, estão há meses com o corpo fechado.

As transexuais foram diversas vezes, após a cirurgia, ao HC. Juliana, semanas após a intervenção, sofreu uma infecção urinária e ainda precisou de uma nova operação para redesenhar a vagina, já que havia excesso de pele. Durante a recuperação, uma enfermeira esqueceu fechada a sonda posta em Juliana e a urina se acumulou em seu organismo. "“A cirurgia explodiu, ficou horrível".” Uma nova intervenção foi feita para recompor a vagina. Juliana, porém, não ficou satisfeita com a aparência de seu púbis. “"Vi o resultado da cirurgia de outras meninas. Não está igual. Minha vagina está horrível, exposta, sem a cobertura dos lábios".” Ela conta que, em uma das últimas consultas, ao reclamar da aparência do púbis, ouviu do cirurgião: “"Se quisesse melhor, deveria ter nascido mulher”". Sabino Pinho diz que, antes do acidente, a cirurgia estava perfeita. "“Fiz o melhor que pude para recompor a vagina, mas é claro que não ficou do jeito que eu operei anteriormente. O que eu quis dizer é que posso fazer a dilatação, que a recomposição é o que melhor pude fazer. Não me lembro nem como falei".” A frustração com o corpo que apenas se aproxima daquilo que Juliana sempre sonhou tem provocado outras dificuldades na sua vida. Na semana passada, comemorava ter conseguido um trabalho. Na quarta, pediu para sair. "“Deixei o emprego para correr atrás da cirurgia. Não tem como ficar feliz por muito tempo".”

Joicy tem situação ainda mais complicada. Sem um parceiro para apoiá-la e vivendo em Alagoinha, no Agreste, a 250 quilômetros do Recife, a agricultora realizou a cirurgia em novembro de 2010. Em meados do ano passado, precisou dilatar as paredes do canal vaginal. Sem os cuidados necessários para manter o molde no local (uso de calcinhas mais apertadas) e sem dinheiro para comprar os medicamentos que ajudariam na cicatrização (pomada à base de fibrinolisina, cerca de R$ 50, 30 gramas), o canal fechou novamente. Voltou ao HC e refez o procedimento. As paredes colaram mais uma vez. Joicy serve como um forte exemplo de como a cirurgia de transexualização não pode ser pensada apenas como uma intervenção em si: ela envolve um cuidado mais amplo das pacientes, que precisam ser acompanhadas semanalmente após saírem do hospital (como o Sistema Único de Saúde recomenda). A não observação deste fator pelo HC tem causado não só o sofrimento de várias transexuais, mas custos mais elevados ao próprio serviço público de saúde, já que as reaberturas de canal também são feitas com verbas federais.

Identidade

O pacote da falta de cuidados atrelados à transexualização inclui a ausência de orientação para que as novas mulheres consigam adotar o nome social em documentos como a identidade. O hospital afirma que assessora as pacientes após a cirurgia, mas na prática isso não acontece. De acordo com relatos das próprias transexuais, as recomendações do HC não são as mesmas para todas as mulheres. Tamires Gomes, 37, fez a cirurgia em dezembro mas ainda não teve acesso ao laudo médico indicando sua condição de transexual atendida pelo serviço público. "“Fui no HC no começo de março para uma consulta, mas informaram que não havia médico. Também não consegui falar sobre o laudo".” Este documento, indicando que um psiquiatra encontrou na paciente um distúrbio de identidade, é importante para que o processo seja iniciado e corra sem grandes complicações. Joicy até hoje carrega consigo a identidade onde lemos João Batista da Silva no lugar da assinatura. Está há anos tentando dar conta da burocracia que acompanhou todo seu processo de transformação em mulher. Perdeu a conta das vezes que foi ao Fórum de Alagoinha tentando resolver a questão. Juliana procurou um advogado particular. Ele solicitou o laudo do psiquiatra e uma xerox do prontuário para apresentar à Justiça. "“Falei com Inalda (Lafayette, psicóloga que acompanha as transexuais no HC) e ela conseguiu o laudo, mas não o prontuário. Disseram que só passariam se a Justiça pedisse".”

A falta de cuidado do hospital em relação às pacientes transexuais alertou entidades como a Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans) e o Núcleo de Pesquisa em Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco (Gema/UFPE), ambas incluídas no Fórum LGBT de Pernambuco. Este vem colhendo informações para entrar com um pedido de audiência pública no Ministério Público. "“Temos recebido algumas denúncias de procedimentos irregulares na readequação sexual realizada pelo HC"”, diz Tiago Corrêa, do Gema.

Cirurgia fora da lista oficial do SUS

Realizadas há 11 anos, as cirurgias de redesignação sexual do Hospital das Clínicas (HC) não fazem parte, oficialmente, da rede do Sistema Único de Saúde (SUS). No local, o processo de transexualização é feito com a verba que o sistema destina para procedimentos de alta complexidade (o tratamento, que dura mais de dois anos, custa cerca de R$ 1,3 milhão por paciente). No Brasil, apenas quatro hospitais públicos atendem transexuais masculinos para femininos através do SUS: Hospital das Clínicas de Porto Alegre, Hospital Universitário Pedro Ernesto (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Fundação Faculdade de Medicina/Instituto de Psiquiatria (São Paulo) e Hospital das Clínicas de Goiás.

O Hospital das Clínicas pernambucano não foi habilitado pelo Ministério da Saúde para as cirurgias porque não atende aos pré-requisitos exigidos pelo SUS. O texto voltado para o tratamento de transexuais é claro: o acompanhamento das pacientes não pode se restringir ao diagnóstico e à intervenção cirúrgica, tem que dar conta da saúde integral das transexuais, com ênfase na reinserção social. Dentro desse processo, está incluída a terapia hormonal, havendo necessidade de assistência endocrinológica. "“Os exames devem ser realizados com intervalo máximo de um ano, a fim de reduzir danos por efeitos colaterais do uso da medicação, e para viabilizar diagnósticos precoces em relação a câncer e baixa densiometria ósseos”", diz o texto do SUS, que recomenda acompanhamento pós-cirúrgico de pelo menos dois anos. Psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras e cirurgião são alguns dos profissionais que integram a equipe multidisciplinar.

Cotado para assumir a chefia das cirurgias de redesignação sexual do HC, o urologista Rogerson Tenório de Andrade integra, desde 2005, a equipe de Sabino Pinho. Ele espera que a direção do HC finalize sua transferência do Hospital Otávio de Freitas, que é estadual, para o HC gerido pelo governo federal. Apesar de ainda não estar no cargo, o médico encaminhou à direção do hospital projeto de criação de um Ambulatório de Sexualidade, no qual as transexuais também seriam atendidas. Ciente das dificuldades das pacientes que procuram o serviço, ele solicita a criação de um núcleo com fonoaudiólogos, endocrinologista, psiquiatra. O professor adjunto de ginecologia da UFPE José Carlos de Lima substituirá, na especialidade médica, o cirurgião Sabino Pinho. "“O Conselho Federal de Medicina (CFM) exige vários especialistas para atender estes pacientes".” Uma das transexuais que aguarda há dois anos a cirurgia e preferiu não se identificar disse que, em sua última visita ao hospital (dia 17) foi informada de que também não havia psiquiatra para atender novas pacientes. Há cerca de um ano, o serviço não conta com atendimento psiquiátrico. Os médicos Roberto Faustino e João Ricardo não foram substituídos.

Urologista do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe/RJ), um dos mais completos do serviço público nas cirurgias em transexuais, Eloísio Alexsandro diz que atendimento com intenção de cirurgia de transgenitalização, privado ou público, deve seguir recomendações da resolução 1.955/2010 do CFM. A prática no SUS segue a portaria 1.707/2008 do Ministério da Saúde e está fundamentada na resolução do CFM. "“Esta portaria determina que a equipe multidisciplinar tenha no mínimo um cirurgião reconstrutor genital, um médico prescritor, psicólogo, psiquiatra e assistente social".” A equipe que realiza cirurgias de transexualização no HC, até o momento da aposentadoria de Sabino Pinho, era formada por urologista, ginecologista e dois residentes, de acordo com Rogerson Tenório de Andrade. A psicóloga Inalda Lafayette integra a equipe.

Outra diferença entre o Hupe e o HC está na orientação em relação aos novos documentos. No centro de referência, assim que as transexuais recebem os laudos de psicólogos e psiquiatras atestando sua condição transexual, são encaminhadas à defensoria pública do Rio de Janeiro para alterar pré-nome e gênero. Não precisam esperar os dois anos de tratamento psicológico nem a cirurgia para iniciar a mudança de nome.

Especial mostra a dificuldade

A falta de acompanhamento mais eficiente e mesmo humano entre as pacientes que tentam ou já se submeteram a cirurgia de redesignação no HC foi um dos fios condutores da reportagem "O Nascimento de Joicy", publicada pelo Jornal do Commercio em abril de 2011. A série, que durou três dias, foi baseada na transexual Joicy Melo, 51 anos. Em cinco meses, foi possível acompanhá-la a várias visitas ao serviço de ginecologia do hospital. Detalhes em http://www2.uol.com.br/JC/especial/joicy


Disponível em http://www.ufpe.br/agencia/clipping/index.php?option=com_content&view=article&id=4655%3Ao-que-nao-deu-certo-para-elas&catid=34&Itemid=122. Acesso em 09 fev2014.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Responsável por equipe rechaça denúncias

Diário da Manhã
28.09.2012

Em resposta à reportagem do DM, a professora doutora e ginecologista responsável pela equipe do Projeto Transexualismo, Mariluza Terra, enviou um segundo e-mail em que esclarecia detalhes sobre as afirmativas das pessoas entrevistadas.

“Ana Paula passou por sete cirurgias em Goiânia, tendo sido a última em 14 de maio, realizada por cirurgião de renome internacional, professor doutor Miroslav Djordjevic, da Universidade de Belgrado, na Sérvia. Uma semana após a cirurgia, a paciente começou a ligar para o Ministério da Saúde, desejando ser encaminhada para unidade de saúde no Rio de Janeiro, que ela julga ser melhor. Não foi possível. Em seguida, ela resolveu e realizou a oitava cirurgia em São Paulo, com apenas quatro meses do último procedimento, não tendo tempo de avaliarmos os resultados.”

“Infelizmente, houve sérias complicações. Ana Paula nunca deixou de ser paciente do Hospital das Clínicas, inclusive, me ligou várias vezes. Nunca me pediu para examiná-la. Pediu para que eu conseguisse uma consulta no Rio, o que não é possível, por muitos motivos, inclusive porque não estão aceitando novos pacientes, assim como faremos também, a partir de 2 de no­vembro.”

“Quando qualquer paciente faz cirurgias com outro médico e há complicações, normalmente esse profissional se responsabiliza, indicando a conduta ou procedimentos. É o que pensei que estava acontecendo, porque ela mandou fotos para ele e para mim como cópia do e-mail. Não existe essa possibilidade de ter infeccionado porque não trocou os curativos em Goiânia. Nada ficou acordado, nem por ela, tampouco pelo médico, para nossa equipe fazer o acompanhamento pós-cirúrgico.”

“Antes de ir para São Paulo, Ana Paula me perguntou se se precisasse eu poderia examiná-la e eu disse que o médico principal seria o que fez a cirurgia, mas que se necessitasse, lógico que a examinaria, só que ela não pediu. Para mim, ficou muito claro desde a última cirurgia, em maio, que ela não confia na nossa equipe. Por essa razão, não foi surpresa ela não pedir. Assim, se ela quiser voltar a ser atendida pelo Hospital das Clínicas, basta fazer um telefonema (ela tem todos os meus contatos) e eu remarco uma consulta. Simples assim.”
“Quanto à Beth, já é um pouco diferente. Eu já expliquei o que está acontecendo, mas ela não acredita. Ela foi submetida a três cirurgias para melhor estética e funcionalidade, no centro cirúr­gico, e duas suturas, porque abriram os pontos externos, na sala de pequena cirurgia. Num e-mail para o Ministério da Saúde, ela refere que já foram feitas várias denúncias contra a equipe de Goiás, mas eu desconheço.”

“Até gostaria de saber de quais denunciantes ela estaria falando, porque, se de 47 pacientes operadas, 20 estão profundamente insatisfeitas, a decisão inteligente seria fechar o Projeto Transexualismo imediatamente, não realizando mais nenhuma cirurgia. Beth ainda é paciente do Hospital das Clínicas, se ela quisesse. Eu a examinei há mais ou menos dois ou três meses, quando expliquei a ela sobre sua cirurgia. Não faz parte do meu temperamento enxotar ninguém, muito menos pacientes. Ela se enganou quanto a isso.”

“No momento, que eu saiba, somente essas duas pacientes estão insatisfeitas com nossa equipe. Até podem aparecer mais, pois é uma cirurgia delicada, com muitas possíveis complicações. Mas pode ter certeza de uma coisa, se chegarmos à conclusão de que as pacientes estão insatisfeitas e que não vale mais a pena manter nosso trabalho, pararemos imediatamente.”

Disponível em <http://www.dm.com.br/#!/texto?id=68664>. Acesso em 04 nov 2012.

OBS: A reportagem está dividida em três partes. A primeira foi postada anteontem e a segunda ontem.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Perdi a confiança, diz Beth

Jairo Menezes
28.09.2012

Psicóloga, presidenta do Fórum de Transexuais de Goiás e primeira diretora do Conselho Estadual da Mulher (Conem) a ter sido transexual, Roberta Fernandes de Souza, ou Beth Fernandes, como é conhecida, hoje tem 45 anos. Ela revela ter feito resignação sexual no Hospital das Clínicas de Goiânia. A paciente teria feito oito cirurgias, segundo relatou em entrevista ao DM, mas depois de não terem sido feitas correções necessárias para que o órgão sexual tivesse um aspecto normal, desistiu do tratamento oferecido pelo Serviço Único de Saúde (SUS).

Conforme Beth, a primeira cirurgia que ela fez foi um “desastre da medicina”. Segundo a psicóloga, uma falha básica aconteceu no procedimento a que ela foi submetida. “Toda pessoa no primário sabe que uma das diferenças do esqueleto masculino e do esqueleto feminino é a pélvis – o osso da bacia. Na minha cirurgia, a vagina ficou colada na pélvis, e isso me causou um transtorno que não existe como mensurar”, relata.

“Eu fiz oito cirurgias para tentar corrigir a mudança de sexo feita de forma errada. Após muito tempo de tentativas e dando fé de que a equipe conseguiria um bom resultado, desisti e resolvi pagar o tratamento particular. Hoje, os meus médicos não são de Goiânia. Não que aqui não tenham bons profissionais, e os médicos do hospital em que eu fui tratada são ótimos, a questão é que a técnica usada não está dando certo, e eu perdi a confiança”, aponta a psicóloga Beth Fernandes, que diz ter sido “enxotada do hospital”.

Beth conta que essa é a luta de uma vida inteira dela e que precisa de mais cuidados. “Eu não poderia fazer cirurgias à revelia assim, tendo meu corpo usado por cientistas, como se eu fosse uma cobaia. Hoje, eu posso bancar um tratamento particular, mas existem muitas pessoas que não podem e estão lá, sujeitas a até 12 cirurgias, como eu conheço pessoas. Conheço pelo menos 20 mulheres que padecem com esses problemas”, constata.

“Acredito que no momento em que a equipe médica de Goiânia constatasse que existe algo errado na técnica realizada, deveria pelo menos tentar mudar onde existe a falha e transferir para onde tem dado certo com pessoas que foram operadas. Assim, todos estariam tranquilos e hoje não haveria esta desconfiança sobre o trabalho realizado na unidade”, aponta Beth Fernandes.

Disponível em <http://www.dm.com.br/#!/texto?id=68663>. Acesso em 04 nov 2012.

OBS: A reportagem está dividida em três partes. A primeira foi postada ontem e a terceira será postada amanhã.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O drama da mudança de sexo

Jairo Menezes
28.09.2012

Nascida João Batista, Ana Paula só foi conseguir a mudança judicialmente do nome aos 36 anos – cinco anos atrás. Transexual, não sabia o que acontecia no seu corpo, mas achava estranho se olhar no espelho e sentir-se mulher, mesmo vendo que tinha nascido fisicamente numa estrutura errada. Foi xingada, ameaçada, humilhada e até pedras foram arremessadas na sua direção. Sofreu, mas chorou calada, para não afetar pessoas a sua volta. Ana Paula acreditava que a resignação sexual ou mudança de sexo seria o fim desses problemas, mas, pelo contrário, a partir daí começaria o seu calvário.

No Brasil, uma pessoa faz mudança de sexo a cada 16 dias, segundo estudo da Organização Mundial de Saúde (OMS). Até 2007, a cirurgia era considerada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) como experimental e só poderia ser feita em hospitais universitários. O Sistema Único de Saúde (SUS) só realiza cirurgias em quatro unidades do País: em São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e no Hospital das Clínicas, em Goiânia.

Dores, inflamações, infecções e limitações no dia a dia são apenas alguns problemas vividos por alguns pacientes que padecem após a realização de cirurgias. Em alguns casos, pacientes têm que refazer as cirurgias que em outras unidades de saúde são concluídas de uma só vez. O Ministério da Saúde (MS) tem conhecimento da quantidade de cirurgias, mas transmite a responsabilidade a nível local – cada unidade determina a necessidade e o governo paga o que for necessário – cada cirurgia, sem levar em conta o período de internação, pode variar entre R$ 15 mil e R$ 30 mil.

O caso da cabeleireira Ana Paula Rodrigues de Almeida, de 41 anos, que mora em Nazário, cidade distante 70 quilômetros de Goiânia, é preocupante. Ela se diz apenas uma das muitas pacientes que padecem com complicações da cirurgia. “Hoje vivo impossibilitada de realizar atividades simples do cotidiano, como descer e subir escadas, andar longas distâncias e me sentar normalmente.”

Ana Paula está com toda a cirurgia aberta e já teve infecções e inflamações. Ela diz não ser mais paciente do Hospital das Clínicas de Goiânia, onde foram realizadas dez cirurgias ao todo, inclusive para implante de prótese mamária, retirada de pomo de Adão e retoque na voz. Todas as outras deram certo, conforme Ana Paula, mas a de resignação sexual teria sido insuficiente. “A minha vagina ficou com tamanho insuficiente. É como se fosse um corpo adulto com uma vagina de tamanho infantil. Fiz a cirurgia para mudança e outras seis para retoques e estética, mas mesmo assim não ficou bem feito”, alega.

Ana Paula diz que não quer apontar onde está a culpa, ou de quem é o erro. Ela só espera que receba ajuda da mesma unidade de tratamento. “Sofri esses anos todos. Estou com 42 anos e espero viver tranquilamente. Hoje não sou uma pessoa completa. Já me sugeriram que abrisse um processo contra o Hospital das Clínicas (HC) e contra os médicos de lá, mas não quero isso. Eu queria mesmo uma transferência para outra unidade de saúde que fizesse o mesmo tratamento – é como se não me sentisse segura no HC. Se não der, quero me tratar onde for. Estou morrendo aos poucos e, antes que isso aconteça, eu faço o apelo.”

Em resposta às afirmativas da cabeleireira Ana Paula, a diretoria-geral do Hospital das Clínicas remeteu à reportagem do Diário da Manhã um e-mail escrito pela professora doutora e ginecologista Mariluza Terra Silveira, responsável pela equipe que realiza as cirurgias. A mensagem esclarece que a paciente Ana Paula ainda faz parte do quadro do HC. A mensagem ainda deixa claro que “ela foi submetida à cirurgia de resignação sexual, mais seis retoques, uma colocação de próteses mamárias e uma cirurgia para remoção do pomo de Adão e melhora do padrão da voz”.

LUTA VITAL

Ana Paula nasceu João Batista Rodrigues de Almeida, viveu com constantes preconceitos até se tornar judicialmente Ana Paula Rodrigues de Almeida, em 2008. O rapaz jovem não entendia o que acontecia com seu corpo, mas não se sentia confortável em se ver no espelho com um órgão sexual masculino, mesmo que se sentisse uma mulher. “Sofri demais na minha infância. Muitas pessoas apontaram para mim, me fizeram de chacota. Hoje eu sei por que, mas antes não entendia. Tinha vergonha”, diz Ana Paula, que teve autorização judicial em 2008 para mudar os primeiros dois nomes nos docu­mentos, “agora sou mulher de direito”. Criado com a mãe e o irmão – que é transexual e hoje, após ver o que aconteceu com Ana Paula, reavalia a cirurgia –, muitas vezes escondia da genitora as agressões verbais e até físicas que sofria nas ruas.

“Já fui xingada, me jogaram pedras e outras aberrações. Morei a vida toda no interior. Era tratada como uma aberração”, recorda. Ana Paula deixou os estudos por conta do preconceito que sofria na sala de aula e, para isentar a mãe do que acontecia, preferia sempre não contar. “Chorei muito escondida no banheiro de casa. Era chamada muitas vezes de travesti. Eu, como não entendia bem, deixava. Afinal, todos diziam que eu era o travesti da cidade. Quando fui a uma consulta médica em São Paulo, em 1997, antes de entrar na fila para realizar a primeira cirurgia no Hospital das Clínicas de Goiânia, fui informada. Eu não havia escutado ainda a palavra transexual e não sabia a definição”, revela.

Em 1998, Ana Paula entrou na fila para realizar a cirurgia de mudança de sexo no Hospital das Clínicas de Goiânia. A cirurgia demoraria pelo menos dois anos para acontecer, segundo a cabeleireira, que revela ter ficado impaciente com a possibilidade de ter o sexo mudado e viver normalmente, como mulher. Ana Paula até buscou formas de realizar a mudança de sexo de forma particular – “seria mais rápido” –, mas o valor era inviável e praticamente impossível para a, na época, transexual. Somente a cirurgia particular, em 1998, custava R$ 15 mil, e Ana Paula não tinha a quantia para quitar o tratamento. “Ainda tentei buscar conseguir o dinheiro de alguma forma, com ajuda de políticos que me prometeram mundos e fundos, mas não me favoreceram com nada; o Diário da Manhã ainda fez uma reportagem comigo à época, quando eu me dispus a vender até um rim para conseguir o valor, mas mesmo assim não consegui”, recorda.

COMPLICAÇÕES

Todas as cirurgias que ela passou, antes da última, em 14 de maio passado, são qualificadas como incompetentes por ela. “Não conseguiam dar profundidade à vagina. Quando davam profundidade, não havia prazer no coito”, ressalta. Ana Paula ainda tentou um Guia de Tra­ta­mento Fora de Domicílio (TFD), que se resume em atender pacientes de outras cidades ou Estados onde o tratamento não existe. A TFD é emitida pela Central Reguladora e, conforme resposta à repor­tagem do DM, o tratamento que Ana Paula pediu para fazer no Rio de Janeiro existe em Goiás e, portanto, não é autorizada pelo Ministério da Saúde a liberação nesse caso.

“Diante desse quadro de não liberação da TFD, resolvi fazer das tripas coração. Vendi meu carro, peguei dinheiro emprestado e dei um jeito de levantar R$ 10 mil para fazer uma cirurgia em São Paulo, com um médico particular. Ele fez uma cirurgia corretiva e ficou ótima. O problema é que eu recebi alta médica lá de São Paulo e era necessário refazer os curativos diariamente. Meu dinheiro havia acabado e eu voltei para Goiás. Aqui, os curativos não foram refeitos como o indicado. A cirurgia inflamou, os pontos estouraram e adquiri uma infecção”, descreve Ana Paula.

Ana Paula teria entrado com um pedido de recurso no Ministério Público Estadual de Goiás para que houvesse uma intervenção e que uma intercessão fosse realizada para que ela conseguisse uma TFD. “Eu queria um tratamento no Rio e justifiquei o porquê, mas houve a negativa”, conta a cabeleireira. Pela assessoria jurídica da 82ª Promotoria, o Diário da Manhã recebeu a resposta de que os embasamentos técnicos apresentados pela paciente, e contestados com a justificativa da médica que a atendeu, não foram suficientes para uma intervenção.

O processo no MP-GO foi arquivado e a paciente recebeu em casa uma cópia do projeto, com a justificativa da médica enviada ao Ministério e a negativa da promotora Renata Matos Lacerda. Conforme a assessoria jurídica da promotoria, ficou claro nos autos que a paciente desejava uma nova cirurgia aos 45 dias do último procedimento. Ainda segundo a promotoria, não havia condições de distinguir se a cirurgia que Ana Paula atestava ter sido ineficiente era mesmo incompetente.

SITUAÇÃO

Ela hoje está com a cirurgia aberta e com músculos e tecidos internos expostos. “Hoje já estou bem melhor, que a infecção está sendo tratada, mas na semana passada eu estava em cima da cama e sentia o mau cheiro. Era como se eu tivesse assistindo à minha decomposição”, lamenta.

Por meio da secretária da diretoria-geral do Hospital das Clínicas Deusa José de Souza, a médica Mariluza Terra Silveira respondeu que, infelizmente, não pode dar entrevista por estar ocupada. A reportagem esteve à disposição por duas semanas para obter resposta. A médica ainda responde por meio da secretária que a paciente poderá procurá-la no Hospital das Clínicas para ser avaliada por uma equipe médica. É neces­sário reafirmar que mesmo após a publicação desta reportagem, o espaço do Diário da Manhã se mantém aberto a esclarecimentos por parte da médica.

A direção-geral do HC informa que já foram realizadas 47 cirurgias de mudança de sexo do masculino para o feminino. As mudanças de sexo do masculino para o feminino realizadas no HC, conforme a diretoria, foram um total de três incompletas e oito completas. Todos os rapazes que mudaram de sexo são acompanhados pelo hospital, e, conforme informado, 45 mulheres transexuais ainda são seguidas pelas equipes neste ano.

Disponível em <http://www.dm.com.br/#!/texto?id=68666>. Acesso em 04 nov 2012


OBS: A reportagem está dividida em três partes. A segunda será postada amanhã.