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terça-feira, 11 de agosto de 2015

Mulheres transexuais e o processo transexualizador: experiências de sujeição, padecimento e prazer na adequação do corpo

Analídia Rodolpho Petry
Revista Gaúcha de Enfermagem
2015 jun;36(2):70-5


Resumo: Objetivo: Neste artigo, busca-se compreender as experiências de mulheres transexuais em relação à hormonioterapia e à cirurgia de redesignação sexual que constituem o Processo Transexualizador. Método: Trata-se de uma pesquisa qualitativa inserida no campo dos estudos culturais e de gênero. A coleta de dados utilizou entrevistas narrativas, realizadas em 2010 e 2011 com sete mulheres transexuais que se submeteram ao Processo Transexualizador há, pelo menos, dois anos. Os dados foram submetidos à análise temática. Resultados: Os resultados mostram que os processos de transformação para a construção do corpo feminino envolvem adequar o comportamento, postura, empostação da voz, uso de hormônios, dilatação do canal vaginal e complicações cirúrgicas. Tais processos sujeitam o corpo a se construir conforme idealizado para adequar-se a sua identidade de gênero, infringindo-lhe prazeres e padecimentos. Conclusão: Conclui-se que a discussão que envolve o Processo Transexualizador traz subsídios para a enfermagem acerca das modificações corporais vivenciadas pelas mulheres transexuais.


sábado, 27 de setembro de 2014

O anonimato nas redes sociais

Gisele Meter
  
Engana-se quem acredita que as redes sociais só existem por causa da tecnologia. O termo rede social está relacionado a interação social e é exatamente por meio dessa troca que se constituiu o que hoje chamamos de sociedade.

Participar de uma rede social é sentir-se pertencente e atuante em seu meio, seja pela expressão de ideias, exposição de pensamentos e ou até mesmo pela avaliação de determinado comportamento de alguém do grupo.

Interagir socialmente é necessário na medida em que estamos em constante evolução. Grande parte dessa transformação pessoal também é “injetada” em nossa subjetividade por meio da socialização com outras pessoas.

Com o advento tecnológico nos foi permitida uma interação social que independe de fronteiras, pois o acesso à Internet possibilitou a derrubada de barreiras espaciais e temporais em prol desta interação, formando uma linha tênue que hoje separa a vida real da virtual.

A popularização da Internet ocorreu na década de 1990, quando os e-mails faziam a função de conectar pessoas. A partir de então, houve uma dinâmica no sentido de estarmos cada vez mais em contato com outros indivíduos de maneira abrangente. Surgiram, assim, os chats – ferramentas para conversa em tempo real através de dois computadores. Desde aquela época o anonimato já era comum em salas de bate-papo de grandes sites. Pessoas se identificavam com um nickname sem a necessidade de revelar suas identidades verdadeiras.

Os chats passaram a conectar pessoas. No entanto, começaram a perder força para seus sucessores: Mirc, ICQ, que posteriormente foram substituídos pelo MSN Messenger e outros do gênero. A utilização destes programas permitia não somente que fizéssemos interação social, mas que também constituíssemos nossa própria rede de contatos, utilizando nomes verdadeiros e identidades reais.

A evolução da comunicação virtual, a cada nova atualização, provocou migrações em massa. O fato foi constatado expressivamente em 2003, com o surgimento da primeira rede social denominada MySpace que no ano seguinte, foi praticamente engolida pelo Orkut (2004) e que, consequentemente, também foi quase extinta com o surgimento do Facebook (2004), Twitt er (2006) e Instagram (2010). No entanto, o que todas tinham em comum, além de serem redes sociais, era a necessidade de utilizar a identidade real para assim constituir também a sua identidade virtual interativa.

Em 2007, com a popularização dos smartphones no Brasil, as redes sociais ganharam mais força, sendo utilizadas amplamente via dispositivos móveis para a conexão social virtual, não sendo mais necessário estar diante de um computador para interagir com outras pessoas.
Desde o surgimento de chats anônimos no início da Internet até hoje, com a conexão via celular a qualquer hora e em qualquer lugar, podemos perceber como a questão da identidade é relevante no mundo virtual.

Em 2013, ocorreu novamente outra dinâmica de configuração que veio para intrigar até mesmo grandes especialistas da área tecnológica. Houve, assim, um boom de programas que têm sua interação exclusivamente permeada pelo anonimato.

Atualmente, parece que esse tema retornou com força total, desafiando não somente a lógica evolutiva das redes sociais, mas também da própria interação humana, pois a identidade se resigna a um segundo plano, priorizando novamente a não-identidade para o estabelecimento tanto de relações como de interações sociais.

Avaliação virtual

A diferença do anonimato do início da Internet para o que estamos presenciando hoje se baseia, principalmente, na forma de interação.

Se anteriormente as pessoas utilizavam o anonimato para conversas, hoje elas utilizam também para emitir opiniões sobre outras pessoas, avaliando, expondo e deixando registrado o que pensam para quem quiser ver. Logo, conversas que ficariam restritas a um pequeno grupo passam a ter abrangência assustadoramente incalculável.

Com a popularização dos smartphones no Brasil, as redes sociais ganharam mais força, sendo utilizadas amplamente para a conexão social virtual

Essa prática ficou ainda mais evidente com o surgimento de aplicativos sociais para dispositivos móveis. Prova disso foi o frisson causado no final de 2013 pelo aplicativo feminino denominado Lulu, que até a data do fechamento deste artigo encontrava- se indisponível para download nas lojas AppStore e Google Play. No Brasil, tal aplicativo teve por objetivo o compartilhamento anônimo de informações e percepções acerca de outro indivíduo, no caso, do sexo masculino. Sem o seu conhecimento ou tampouco o seu consentimento, o que causou grande insatisfação de muitos homens no país, cuja exposição em tal programa “puxava” informações de outra rede social (Facebook), exportando-as para a sua plataforma, e era feita por meio avaliações com notas ou hashtags. Caso volte ao ar, algumas mudanças deverão ser feitas, como manter no sistema somente usuários que autorizem fornecer suas informações.

Pensadora contemporânea
Filósofa política alemã de origem judaica, Hannah Arendt é uma das mulheres mais influentes do século XX. Seu trabalho abarca temas como a política, a autoridade, o totalitarismo, a educação, a condição laboral, a violência e a condição feminina. Seu primeiro livro leva o título O Conceito do Amor em Santo Agostinho: Ensaio de uma interpretação filosófica. Trata-se de sua tese, editada em 1929 em Berlim, na qual ela enlaça elementos da Filosofia de Martin Heidegger com os de Karl Jaspers e já enfatiza a importância do nascimento, tanto para o indivíduo como para seu próximo. Em As Origens do Totalitarismo (1951) consolida o seu prestígio como uma das maiores figuras do pensamento político ocidental. Hannah assemelha de forma polêmica, como ideologias totalitárias, o nazismo e o stalinismo. Faz isso com uma explicação compreensiva da sociedade, mas também da vida individual, e mostra como a via totalitária depende da banalização do terror, da manipulação das massas, do acriticismo face à mensagem do poder.

O que chama a atenção, no entanto, é a dinâmica assumida por essas novas plataformas sociais que têm por objetivo não mais somente a interação voltada para o encontro social, mas também a intenção de impactar diretamente a construção da identidade virtual de um indivíduo.

Dessa forma, aplicativos de avaliação virtual favorecem a dinâmica de um comportamento que em uma situação não-virtual da vida cotidiana poderia não ser observado. Isso ocorre porque muitos desses aplicativos usam, justamente, o subterfúgio do anonimato para estimular a avaliação indiscriminada de outros indivíduos, estando quem avalia protegido por uma espécie de máscara, permitindo que possa exercer seu próprio crivo virtual sem nenhum tipo de receio ou culpa. Afinal, a consequência de suas atitudes não voltará para essa pessoa. Ao privilegiar o anonimato em aplicativos sociais, há uma estimulação do comportamento impulsivo sem a devida reflexão de suas consequências.

A conduta fica a critério do bom senso dos usuários que fazem suas próprias regras virtuais, independente dos danos que poderão causar

Além disso, quando avaliamos virtualmente outras pessoas sob uma única perspectiva, tendemos a acreditar que nossas avaliações são apenas virtuais e que, de certa forma, não prejudicaria o outro de forma real e efetiva. É como se, além do anonimato, colocássemos também um véu de deturpação da realidade sobre as consequências de nossos comportamentos, acreditando não estar fazendo mal a ninguém e, assim, enganando a nós mesmos.

É preciso refletir sobre essas ferramentas com um olhar mais crítico para entender o que elas podem impactar em nosso meio. Quando não pensamos nas consequências de nossos julgamentos, tendemos a dissipar a culpa, pois existe a ilusão de que as avaliações proferidas não passam de uma mera brincadeira.

PARA SABER MAIS
Brasileiros e smartphones
Segundo uma pesquisa realizada pela Nielsen provedora global de informações e insights sobre consumidores no ano de 2013, smartphones para os brasileiros servem mesmo é para navegar por redes sociais. O estudo indicou que 75% dos usuários desses dispositivos digitais usam o aparelho primariamente para acesso a redes sociais. O uso ultrapassa a Rússia (59%), Índia (26%), China (62%) e até mesmo os Estados Unidos (63%). O Brasil, hoje, já é destaque pela expressiva participação nas redes sociais, e isso foi replicado no mundo móvel, pois algumas pessoas veem smartphones como uma extensão da conexão à Internet, e outras, ainda, têm os dispositivos móveis como seu único ponto de contato com o mundo digital.

Quando avaliamos virtualmente outra pessoa, estamos não somente julgando seu comportamento ou a sua forma de ser, mas também acabamos por deixar registrada a realidade a partir de experiências pontuais que acreditamos ser uma verdade absoluta, e isso é feito a partir de uma única perspectiva – a do avaliador anônimo. Impulsionadas pela euforia e pelo falso poder de fazer o que desejarem sem serem descobertas, essas pessoas raramente param para pensar sobre o uso da rede em si e quais as consequências que isso pode causar. É como se fosse um movimento egoísta, com o intuito de afetar o outro de forma intencional, e, ao mesmo tempo, um passatempo sem grandes implicações.

É ilusório acreditar que aplicativos de avaliação social não impactam a subjetividade ou a construção da identidade de um sujeito. A partir do momento em que tecemos considerações sobre uma pessoa, baseados naquilo em que percebemos, vivemos ou observamos, estamos deixando de pensar no impacto social de nossas ações, e exercendo o que a teórica política alemã Hannah Arendt chama de mal banal. Ou seja, tomando atitudes que possam prejudicar outras pessoas, sem efetivamente refletir sobre as consequências do ato praticado.

Quem avalia normalmente acaba manifestando comportamentos que, se revelados no mundo real, poderiam não ser aceitos como adequados, logo a importância do anonimato.

É ilusório acreditar que aplicativos de avaliação social não impactam a subjetividade
ou a construção da identidade de um sujeito

Dessa forma, quando uma pessoa avalia outro sujeito sem refletir sobre o mal que pode causar à sua subjetividade ou a seu processo de socialização, acaba por tolher, tanto de forma virtual como real, a potencialidade de ser da pessoa que é avaliada. Isso porque, quando colocamos uma informação na Internet, independente de qual seja, não temos como mensurar suas consequências.

O que ocorre, no entanto é que, hoje, não existe praticamente nenhuma regulação ou norma de conduta efetiva em relação a redes sociais que permita que um usuário interaja anonimamente. É o caso de aplicativos como o “Secret” e o “Whisper” – em que as pessoas utilizam o subterfúgio do anonimato para expor o que pensam sem que os outros fiquem sabendo de onde ou de quem partiu tal informação.

A conduta, por sua vez, fica a critério do bom senso dos usuários que fazem suas próprias regras virtuais, independente dos danos que poderão causar. Afinal, para todas as vantagens individuais que tais programas trazem, sempre existirá um impacto social potencialmente prejudicial para um grande número de pessoas, tanto subjetivamente quando do ponto de vista interacional.

Comportamentos

A comunicação indiscriminada e anônima através de programas ou aplicativos na Internet tende a fomentar comportamentos compulsivos, imediatistas, ansiosos e narcisistas, enfraquecendo consideravelmente os grupos sociais nos quais se está interagindo.

A Psicologia Social entende que a construção da identidade de uma pessoa se dá por meio da interação pela qual o indivíduo exerce um papel atuante e dinâmico, afetando o seu meio e, consequentemente, também sendo afetado por ele.

A comunicação indiscriminada e anônima por meio de programas ou aplicativos na Internet tende a fomentar comportamentos compulsivos

Essa dinâmica ocorre sob diversos fatores, tais como a percepção social que dá significado ao que vemos e sentimos, a comunicação que envolve a codificação e a decodificação para a interpretação das mensagens que emitimos ou recebemos, independente de ser constituída apenas pelo verbal, mas passando por aspectos gestuais, posturais e comportamentais.

Para a interação social também devemos considerar as atitudes que são baseadas em comportamentos como resposta a percepção e comunicação do meio em que se está inserido. Sendo assim, a interação via redes sociais pode ser considerada um fenômeno atual e potencialmente transformador, tanto das relações estabelecidas, como da construção da identidade do indivíduo. Isso porque, apesar das relações sociais serem mediadas por um processo não presencial, a profundidade das relações provoca em cada indivíduo uma sensação real de afetação mediad a virtualmente. O que pode ser comprometedor, pois nem todas as ferramentas de interação estão ao alcance do usuário virtual, e interferir consideravelmente em uma relação baseada na realidade.

Esse novo fenômeno desperta interesse da Psicologia Social devido a forma como estas ferramentas digitais estabeleceram um novo padrão não somente de interação, mas também de percepção entre as pessoas cujo contato físico deixa de ser o principal fator de mediação relacional, e o crivo social passa a ser considerado através de uma perspectiva virtual.

Esta dinâmica de conexão interativa pode impactar diretamente no processo de socialização de cada indivíduo que utiliza a Internet como uma forma de se conectar a um grupo ou até mesmo para se sentir atuante ao meio em que pertence. Se considerarmos a máxima de que o sujeito transforma e é transformado pelo meio em que vive, podemos compreender melhor este paradigma.

Realidade inventada

Quando nos referimos a aplicativos sociais que se baseiam no anonimato como forma de interação, devemos levar em consideração que a ideia de percepção social acaba por ser anulada. Isso ocorre uma vez que a compreensão e a percepção do outro, além de suas características, não nos possibilitam ter uma impressão real permeada por dados observáveis, mas apenas naquilo que acreditamos, baseado em nossas próprias percepções. Ou seja, através de tais ferramentas, podemos afetar também nossa forma de interação.

Diferente da relação social permeada pela identidade do sujeito que em contato com outras pessoas organiza informações e categoriza atos, aplicativos sociais podem distorcer a percepção que temos, sendo esta consideravelmente prejudicada. Além de não sabermos quem são as pessoas que interagem em tal programa, ainda existe uma precariedade na recepção das mensagens. Isso ocorre porque nos utilizamos apenas do sentido da visão para constituirmos a percepção que acreditamos ser realidade.

Aplicativos que utilizam subterfúgios do anonimato potencializam a superficialidade analítica que fazemos de outras pessoas, deixando de considerar nossa capacidade de construção do outro e, consequentemente, de nós mesmos. Fazemos assim uma relação social rasa, superficial e não verdadeira.

Aplicativo Lulu no Brasil
O aplicativo Lulu, que permite que mulheres avaliem anonimamente seus amigos do Facebook e causou polêmica no seu lançamento no Brasil, anunciou duas mudanças na ferramenta, exclusivas para o país. Desde dezembro, somente homens que optarem por participar do Lulu serão avaliados no aplicativo. Além disso, o Lulu permite que os homens tenham acesso à sua nota na brincadeira, informação que até agora estava disponível apenas para mulheres. O Lulu chegou ao Brasil em novembro de 2013 e permite apenas que mulheres deem notas e opiniões anônimas sobre homens. O serviço fez sucesso, mas gerou discussões a respeito da privacidade na Internet e enfrentou ações na Justiça. Todo o barulho, porém, alavancou o Brasil como o país com mais usuários no serviço.

Especula-se que o anonimato nas redes sociais seja uma forma de estimular a interação entre as pessoas alegando ser uma relação “anônima mais humana”. No entanto, se considerarmos os aspectos determinados pela Psicologia Social para o processo de interação percebemos que sua essência pode ser totalmente descaracterizada. Afinal, percepção, comunicação como troca de informações, atitudes que podem ser modificadas com novas informações, afetos ou comportamentos, além do processo de socialização e construção da subjetividade são comprometidos pela superficialidade relacional que acaba por não concluir o ciclo completo de recolhimento de dados, baseando-se somente na “verdade única” exposta em tal programa ou na própria percepção sobre um aspecto de outra pessoa.

Aplicativos que utilizam subterfúgios do anonimato potencializam a superficialidade
analítica que fazemos de outras pessoas

Com a virtualização da linguagem, se observarmos por outras perspectivas, o “aqui e o agora” se perdem, possibilitando “flutuar” entre o tempo e o espaço, e assim uma situação mal-resolvida, por exemplo, um amor não correspondido no passado, pode se transformar em uma “nota” ou comentário baseado apenas naquilo que foi vivido e percebido por uma das pessoas envolvidas. É como se pudéssemos ficar vulneráveis ao que os outros pensam, não tendo assim a chance de nos defendermos ou, ao menos, tentarmos reparar aquilo que foi dito ou vivido.

Pegada digital

Grande parte das pessoas hoje tem algum tipo de informação na Internet. Para comprovar isso, basta digitar um nome qualquer em um site de busca para que as informações apareçam rapidamente na tela. Isto é o que chamamos de Pegada Digital, ou seja, informações registradas na Web sobre uma pessoa.

Ter informações negativas registradas no mundo virtual (independente se são verdadeira) pode afetar diretamente os papéis sociais que um indivíduo exerce, isso porque não há controle sobre elas. Pedro Burgos, em seu livro Conecte-se ao que importa (Ed. Leya, 2014) reforça a ideia de pegada digital, afirmando que as fronteiras entre o online e o offline desapareceram e, hoje, ter um perfil “sujo” na Internet é como andar com uma letra escarlate. É importante que em alguns casos a ideia de esquecimento coletivo exista, defende o autor. Por causa da tecnologia digital, a habilidade da sociedade de esquecer foi suspensa, substituída pela memória perfeita, que pode ser acessada a qualquer momento.

Quando pensamos em contextos históricos, a possibilidade de explorar o passado do homem como uma busca pela resolução de problemas presente é totalmente válida, mas quando falamos de construção de uma subjetividade, a questão pode ser analisada sob outro ponto de vista. É preciso que deixemos que cada sujeito constitua sua própria identidade virtual. Não temos o direito de exercer tamanha influência.

Devemos basear nossa relação social na construção de crescimento e possibilidades e não por meio de julgamentos e percepções individuais que influenciem o meio em que o indivíduo está inserido. Ao analisarmos, julgarmos e tecermos opiniões virtuais, devemos nos conscientizar e assumir a responsabilidade de que estaremos minimizando justamente a potencialidade do ser e a transformação permanente das pessoas.

REFERÊNCIAS
  • BOCK, A. M. B.. Psicologia: uma introdução ao estudo de psicologia, 13. Ed reform e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002.
  • BURGOS, P.. Conecte-se ao que Importa: um manual para a vida digital saudável. São Paulo: Leya, 2014.
  • 75% dos Brasileiros usam Smartphones para acessar Redes Sociais, disponível em: http://idgnow.com. br/mobilidade/2013/07/02/75-dosbrasileiros- usa-smartphones-paraacessar- redes-sociais/#sthash. PrcOXhCh.dpuf. (acessos em 25/02/2014)

Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/esps/edicoes/100/artigo311476-1.asp. Acesso em 30 ago 2014.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Em sintonia com o coletivo

Bernd Simon
março de 2005

A cela é pequena e suja. Três homens vestindo trajes desbotados estão encolhidos no chão. Quietos, estremecem a cada ruído no corredor. De repente, dois guardas usando uniforme e óculos escuros aparecem na porta, batendo os cassetetes nas mãos. A violência está para começar.

Seis dias antes, tanto prisioneiros como guardas eram jovens universitários comuns. O ano é 1971, e eles estavam prestes a iniciar uma experiência de duas semanas planejada por Philip G. Zimbardo. O psicólogo da Universidade Stanford dividiu aleatoriamente um grupo de estudantes mentalmente sãos entre "guardas" e "prisioneiros", que deveriam conviver em uma prisão simulada no campus. Zimbardo teve de interromper o estudo prematuramente depois de apenas seis dias, porque os guardas haviam se tornado sádicos, abusando física e psicologicamente dos prisioneiros.

Mas como jovens pacatos puderam se transformar de forma tão assustadora em tão pouco tempo? Naquela época, Zimbardo ofereceu uma resposta simplista: protegidas pelo anonimato da multidão, as pessoas perdem todos os limites e desprezam normas éticas. Na turba, tornam-se animais de um rebanho desenfreado, sem controle ou compaixão.

Atualmente, o estudo clássico, e polêmico, de Zimbardo é freqüentemente citado em apoio à idéia do "coletivo maligno". Mas essa visão se justifica realmente? Pesquisas recentes indicam que, muito embora grupos levem seus integrantes a se comportar de uma forma que eles não fariam no dia-a-dia, essas ações podem ser tanto positivas quanto negativas. No final de 2001, quando os psicólogos britânicos Stephen D. Reicher e S. Alexander Haslam reproduziram a experiência do prisioneiro para o que viria a ser um reality show exibido pela rede BBC, os guardas agiram de forma um tanto cautelosa.

Em razão dos resultados contraditórios, Haslam e Reicher concluíram que o comportamento do grupo depende das expectativas de seus membros sobre os papéis sociais que eles deveriam desempenhar. Se acreditam que se espera deles uma conduta autoritária, é bem provável que ocorram abusos. Zimbardo, por exemplo, encorajava os guardas a portarem-se de modo ameaçador. A chave para entender como os indivíduos de um grupo irão proceder são suas crenças pré-condicionadas sobre o que devem fazer.

Embora os psicólogos possam discordar se indivíduos em uma multidão tornam-se bons ou maus, eles concordam num ponto fundamental: imerso no coletivo, o indivíduo extrapola a si mesmo, para o bem e para o mal.

A dinâmica dos grupos e movimentos de massa é fascinante por causa dos extremos a que podem levar as pessoas. Um indivíduo em um grupo de voluntários arrisca a vida para salvar uma criança, evitando que ela caia nas águas de uma enchente, enquanto outro, em nome de uma causa coletiva "maior", de bom grado se sacrifica como homem-bomba. Demonstrações desse tipo ocorreram diversas vezes na história, desde a turba clamando pela crucificação de Jesus até a boa vontade dos povos na recente Olimpíada de Atenas.

Regras fanáticas

Em geral, o temor das pessoas em relação à mentalidade das massas cria nelas a expectativa de que grupos apresentem aspectos sinistros, apesar de a história mostrar, por exemplo, que mudanças sociais positivas são impossíveis sem movimentos de massa. O surgimento dos direitos humanos, a queda do Muro de Berlim, o ambientalismo - muitos avanços recentes resultaram do engajamento massivo de pessoas que lutaram por um bem comum, colocando seus interesses pessoais em segundo plano para atingi-lo. O experimento da BBC destrói também a visão negativa, muito disseminada, de que, em uma multidão, a identidade do indivíduo se dissolve, e ele é levado a cometer atos imorais e irracionais.

Psicólogos sociais desmistificaram o comportamento coletivo, demonstrando que se trata de atitudes psicológicas normais e explicáveis cientificamente. A psicologia do coletivo não é patológica. Mas com certeza a identidade do indivíduo é, em algum grau, despersonalizada quando ele entra em um grupo social, seja comitê de ação política, seja clube ou orquestra sinfônica.

Mas será que isso basta para alguém perder todo o senso de moralidade e cometer maus atos? A complexa interação entre o "eu" e o "nós" vem confundindo os cientistas há séculos. Em seu livro Psychologie des foules (Psicologia das massas), de 1895, o médico e sociólogo francês Gustav Le Bon argumentava que, em grupo, os indivíduos perdem a identidade e, conseqüentemente, o autocontrole. Guiados apenas por emoções e instintos, agem segundo uma força primitiva, que ele chamou de "inconsciente racial".

Outros pesquisadores afirmaram que coletivos teriam uma consciência mental independente. O psicólogo britânico William McDougall, que formulou, no início do século XX, a chamada hipótese da mentalidade de grupo, considerava que todos aqueles que se juntam a uma multidão abrem mão de sua identidade em favor de uma "alma coletiva".

As teorias de Le Bon e McDougall foram posteriormente alvo de ceticismo: em especial, a idéia da massa com sua própria percepção mental foi considerada por demais metafísica. Mas a noção de perda de identidade do indivíduo sobrevive. Na década de 70, após o trabalho de Zimbardo, a idéia foi desenvolvida e aprimorada pelos estudos dos chamados grupos mínimos. Nessas experiências, os participantes eram alea-toriamente agrupados de acordo com critérios triviais, como preferências no modo de vestir. Apesar de a divisão ser arbitrária, na maioria dos casos isso criou forte sentimento de ligação ao grupo, assim como comportamentos condizentes com esse sentimento.

Baseados nessas investigações, Henri Tajfel, da Universidade de Bristol, Inglaterra, e John C. Turner, atualmente na Universidade Nacional da Austrália, em Canberra, formularam, no início dos anos 80, a "teoria da identidade social". Segundo a tese dos psicólogos, o pertencer a um grupo criava um "sentimento de nós" no indivíduo, a percepção de uma "personalidade coletiva". Quanto mais a pessoa se envolve com o coletivo, maior a sua identificação com ele e mais completa a sua aceitação de valores e normas do grupo. Estas podem variar desde a autodestruição voluntária, como a demonstrada por seitas como o Ramo Davidiano em Waco, Texas, até o socialismo utópico coletivista, caso dos kibutzim em Israel. Ao contrário dos modelos de Le Bon e McDougall, a teoria da identidade social afirma que os indivíduos não são arrastados pela mentalidade de grupo, mas escolhem modos em comum de sentir, perceber, pensar e agir.

A causa do grupo

Apesar disso, objetivos coletivos podem surgir e se fundir aos objetivos pessoais de alguém - por vezes de modo tão completo que a causa do grupo se coloca acima de todo o resto. Em razão disso, o indivíduo pode fazer grandes sacrifícios pessoais por aquilo que supõe ser o bem comum. Ataques terroristas de homens-bomba suicidas dão testemunho eloqüente do quão longe podem ir essas ações. Comportamentos agressivos têm mais probabilidade de irromper se a personalidade coletiva assume o controle sobre a percepção e as ações do indivíduo. Desse modo, a pessoa não mais distingue entre o "eu" e o "ele", mas apenas entre o "nós" e "os outros".

Essa dinâmica pode surgir de forma esporádica também entre pessoas que levam vidas normais, como o vizinho gentil que todos os sábados se transforma no barulhento torcedor de futebol, xingando em alto e bom som os torcedores do outro time. Para ele, essa atitude é o resultado lógico de sua profunda lealdade ao "nós" de seu amado clube. No melhor dos casos, esse torcedor irá ignorar o grupo "estrangeiro" - os outros - mas ele pode, com a mesma facilidade, se tornar desdenhoso e hostil em relação a eles. Essa transformação não é tanto manifestação de uma misteriosa psique de massas, mas uma ação racional coletiva que se ajusta a certas regras estabelecidas. O torcedor de futebol dá seus gritos de guerra no estádio para ajudar seu time a vencer.

Caso o jogo termine em derrota e a frustração dos torcedores se transforme em violência, esta não é indiscriminada; ela se dirige ao grupo oponente, reconhecível por suas insígnias e camisas. Mesmo assim, algumas vezes as fronteiras entre o "nós" e o "eles" mudam de modo surpreendente. Torcedores em confronto de uma hora para outra juntam-se contra a tropa de choque. Em bairros socialmente tumultuosos, membros de grupos étnicos antagonistas tendem a se unir na luta contra o que eles reputam serem ações policiais violentas e injustas. Grupos sociais pouco dados à cooperação podem se aliar em âmbito nacional, como aconteceu nos Estados Unidos depois dos ataques de 11 de setembro de 2001. No entanto, essas situações não explicam como uma passeata pacífica de repente se transforma em uma turba atirando pedras.

O fator crucial parece ser que ações isoladas de indivíduos podem ter efeito catalisador sobre o grupo. Se o primeiro a arremessar uma pedra é reconhecível, de forma inequívoca, como um membro do coletivo - por exemplo, por suas roupas ou palavras-de-ordem - sua ação acaba com qualquer dúvida que os demais tivessem sobre o papel que devem desempenhar. Eles rapidamente imitam o comportamento do "personagem exemplar".

Essas ações, que se espalham rapidamente, às vezes surgem com bastante facilidade em um grupo que não tem um líder forte ou um código de comportamento firmemente estabelecido. Sem orientação clara, os participantes reproduzem, por vontade própria, qualquer suposto "exemplo a ser seguido". Tumultos e quebra-quebras seguem suas próprias regras espontâneas.

Sob anonimato

Mas por que o indivíduo na multidão anônima deveria seguir alguma regra? Escondido sob o anonimato, ele poderia facilmente escapar às regras da coletividade sem temer qualquer sanção. Mas diversos estudos mostram que, na realidade, o anonimato aumenta a disposição da pessoa a se envolver em comportamentos excepcionais. Infelizmente, a aquiescência esporádica com freqüência leva as pessoas a desprezar as regras de comportamento aprendidas durante a socialização normal, do tipo "Seja educado". Em sociedades civilizadas, a maioria das pessoas não quer fazer mal aos outros.

No entanto, como mostrou a experiência de Zimbardo, normas próprias de situações específicas podem surgir, e a adesão a elas ser reforçada pelo anonimato. Em certo sentido, as pessoas do grupo se vêem encorajadas porque pensam que as outras pessoas na multidão provavelmente irão apoiar seu comportamento. Se os voluntários da experiência assumem o papel de guardas de prisão, a agressão pode muito bem se tornar a norma naquela situação; todos "sabem", por meio de filmes e de ouvir falar, que guardas de prisão devem disciplinar os prisioneiros, geralmente por meio do uso da força.

Mas o que faz as pessoas na vida real se unir e se engajar em clubes, organizações e manifestações? No passado, sociólogos consideravam os indivíduos que participam de movimentos de massa, no fundo, egoístas dissimulados. Se e com que intensidade se dava seu engajamento em um grupo dependia da sua "análise de custo-benefício" pessoal - o que ele tinha a perder e a ganhar. Hoje em dia, sabemos que a maioria dos membros é motivada por sua auto-imagem coletiva.Alguém que saiba como influenciar essa autocompreensão coletiva é capaz de liderar as massas a grandes feitos, como Martin Luther King Jr., mas também de desencaminhá-las. Essa habilidade é o que sustenta o carisma de líderes de seitas e revolucionários. Se um herói de guerra ou um terrorista dá sua vida pelo coletivo, ele não está necessariamente fazendo uma análise de custo-benefício equivocada. Na verdade, ele deixou de calcular seu bem-estar pessoal levando em conta a dor ou a morte. Sua consciência foi completamente tragada pelo coletivo. A morte sacrificial passa a ser a forma mais elevada de auto-realização.

Nosso recém-adquirido conhecimento sobre a psicologia das massas talvez nos ajude a, no futuro, resistir à sedução dos demagogos. No momento, ele nos permite entender as forças criativas das coletividades que continuam a tornar possíveis muitos avanços.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/em_sintonia_com_o_coletivo.html. Acesso em 30 ago 2014.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Adolescentes problemáticos? Nem sempre...

Mente Cérebro
fevereiro de 2014

O cérebro adolescente se encaixa de maneira bastante conveniente no mito de que, nessa fase da vida, as pessoas são intrinsecamente incompetentes e irresponsáveis. O psicólogo G. Stanley Hall contribuiu para a disseminação dessa ideia com a publicação de seu livro em dois volumes Adolescência, em 1904. Hall foi enganado tanto pela crise de seus tempos quanto por uma teoria popular da biologia que mais tarde se provou equivocada.

Ele testemunhou uma revolução industrial e a imigração maciça que colocou centenas de milhares de jovens nas ruas de cidades americanas. O psicólogo acreditava na “recapitulação”, uma teoria da biologia segundo a qual o desenvolvimento individual (ontogenia) necessariamente imita o desenvolvimento da espécie (filogenia). Para Hall, a adolescência foi a reconstituição de uma fase “selvagem”, necessária e inevitável da evolução humana – embora na década de 30 a teoria da recapitulação passasse a ser reconsiderada e vista com ressalvas.

É fato que hoje adolescentes exibem alguns sinais de aflição. É fato que os jovens estão expostos a riscos – de depressão a comportamentos de risco (no contato com as drogas, tanto proibidas quanto liberadas, no trânsito e na vida sexual, por exemplo). Mas há algo intrínseco ao cérebro desses rapazes e garotas que de fato seja um risco para eles mesmos e para os outros? Podemos pensar que se esse fosse um “fenômeno universal do desenvolvimento” provavelmente haveria turbulência desse tipo em todo o mundo nessa fase da vida. E não é bem assim.

Em 1991, a antropóloga Alice Schlegel, da Universidade do Arizona, e o psicólogo Herbert Barry III, da Universidade de Pittsburgh, avaliaram pesquisas sobre adolescentes em 186 sociedades pré-industriais. Eles chegaram a várias conclusões interessantes. Uma delas foi que 60% dessas culturas não tinham em seus vocabulários a palavra “adolescência”. Outra constatação: jovens que passavam quase todo o seu tempo como adultos quase não apresentavam sinais de psicopatologia e comportamentos antissociais.

Ainda mais significativo: uma série de estudos de longo prazo iniciada na década de 80 pelos antropólogos Beatrice Whiting e John Whiting, da Universidade Harvard, sugere que problemas com adolescentes começaram a aparecer em outras culturas logo após a introdução de certas influências ocidentais, especialmente educação de estilo ocidental, programas de televisão e filmes. De forma consistente com essas observações, muitos historiadores notaram que durante a maior parte da história humana a adolescência foi um tempo relativamente pacífico de transição para a vida adulta. Os jovens não estavam tentando romper com adultos – a prioridade era aprender a se tornar adulto.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/problematicos__nem_sempre___.html. Acesso em 29 jul 2014.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Conectados, porém sozinhos

Andréa Dietrich
18 mar 2013

Você já parou para pensar que os nossos momentos de reflexão já são quase raros em nossas vidas? E deveriam ser fundamentais para refletirmos sobre nossas atitudes, nossos desafios e sobre nós mesmos. Durante o trânsito parado, no elevador, num restaurante, numa reunião, em todos os momentos lá estamos nós, conectados. Num encontro com amigos, num jantar com a família e lá estamos nós, conectados – e às vezes vemos a mesa toda nos seus celulares.

O que está por trás desse comportamento? Uma necessidade de compartilhar e mostrar somente os momentos onde estamos felizes, realizados e bem sucedidos. Uma imagem programada sobre o que queremos passar. Uma necessidade de editar o que pensamos e falamos, evitando o espontâneo do ‘ao vivo’. É o fenômeno do torpedo, mais textos e menos diálogo, a necessidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, sendo mais superficial nas relações.

A tecnologia não está mudando somente a forma com que fazemos as coisas, mas também o que somos, o que estamos nos tornando. Segundo a psicóloga, estamos exigindo cada vez mais da tecnologia, exigindo que nossos celulares entendam exatamente o que queremos, mas menos do que queremos das nossas relações pessoais. Ao invés de sentirmos para depois compartilharmos, nós compartilhamos o que queremos sentir.

Tudo isso nos faz refletir o quanto as novas gerações estão evoluindo sem conseguir se conectar ao vivo um com o outro. E perdendo uma das habilidades mais importantes para qualquer indivíduo, a convivência em grupo. Essa frase me fez lembrar do caso polêmico do home office abolido no Yahoo e a frase da CEO da empresa dizendo que muitas das melhores decisões das empresas acontecem num cafezinho, numa conversa de corredor, conhecendo pessoas. O mundo isolado das tecnologias, do home office, começa a ser discutido para trazer de volta a necessidade do contato, do diálogo, do jogo de futebol no campinho da esquina.

Eu mesma já escrevi um post no ano passado contra argumentando essa questão, mas, depois de ser mãe, começo mesmo a me preocupar com a individualidade e a vida programada às quais minha filha pode estar exposta daqui em diante.

Temos que aprender a equilibrar nossas vidas, valorizando aquilo que nunca vai conseguir ser apagado: nossas palavras, nossas memórias, nossas risadas, nossos amigos de verdade.


Disponível em http://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/ponto_de_vista/2013/03/18/Conectados-porem-sozinhos.html. Acesso em 23 mar 2014.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Cavalheirismo gera falsas expectativas em relacionamentos

Mente Cérebro
março de 2014

O homem pagar sozinho a conta do restaurante depois de um jantar romântico, ajudar a mulher a carregar as compras ou abrir a porta do carro para que ela entre são atitudes consideradas exemplos de cavalheirismo. Mais precisamente chamado de sexismo benevolente por estudiosos das relações de gênero, esse comportamento é sustentado pela crença patriarcal de que a mulher é mais frágil e menos capaz. Por isso deve ser protegida, ajudada ou, como uma espécie de compensação, privilegiada com pequenas delicadezas.

Valorizadas em culturas sexistas, atitudes cavalheirescas costumam ser interpretadas não como opressão, mas como gentileza e até mesmo sinal de interesse e afeto pela mulher. Um artigo publicado no European Journal of Social Psychology, no entanto, esclarece que esse comportamento, na verdade, prejudica a relação saudável entre os gêneros. Se por um lado o sexismo benevolente favorece as primeiras aproximações, por outro aumenta as chances de frustração no relacionamento, afirmam os autores, psicólogos da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, que analisaram a percepção de 2.700 mulheres sobre cavalheirismo.

Eles observaram que aquelas que se sentiam mais lisonjeadas pelas deferências masculinas se mostraram mais insatisfeitas com o comportamento do parceiro em situações de conflito um ano depois, quando foram novamente entrevistadas. “Expectativas sobre como cada gênero deve se comportar são contrariadas pela realidade da vida a dois. É como se os problemas que invariavelmente surgem com a convivência não condissessem com o ideal do que é ser amada”, diz um dos autores, Matthew Hammond.

Outra pesquisa, da Universidade Estadual da Califórnia, analisou a percepção de ambos os sexos sobre o costume de o homem assumir as despesas no primeiro encontro. Cerca de 17 mil adultos jovens heterossexuais responderam a um questionário on-line elaborado pela psicóloga Janet Lever. De acordo com ela, 64% dos homens afirmaram esperar que sua parceira dividisse a conta, enquanto 44% das mulheres confessaram sentir-se incomodadas em pagar sua parte. A maioria dos entrevistados concordou que esse tipo de situação gerava constrangimento. Segundo Janet, a melhor estratégia nesse caso – como em tantas outras questões que surgem no relacionamento, frisa – é conversar sobre o assunto francamente.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/cavalheirismo_gera_falsas_expectativas_em_relacionamentos.html. Acesso em 15 mar 2014.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Parlamento de Uganda aprova lei contra uso de minissaias

O Globo
20/12/13

O Parlamento de Uganda aprovou projetos de leis controversos que foram amplamente criticados por grupos de direitos humanos. O primeiro proíbe o uso de minissaias e de materiais sexualmente sugestivos. O segundo endurece a punição contra atos homossexuais, incluindo pena de prisão perpétua para reincidentes.

A lei antipornografia pode banir materiais que mostram peitos, coxas e nádegas ou que mostrem qualquer comportamento erótico, segundo o jornal local “Monitor”. Já o projeto de lei contra a homossexualidade pune com pena de prisão quem não denunciar os gays.

O presidente Yoweri Museveni ainda tem que assinar ambas as propostas para se tornar lei. Ativistas de direitos humanos criticaram o projeto antigay, dizem que é um reflexo da intolerância e da discriminação que a comunidade homossexual enfrenta no país.

- Eu sou oficialmente ilegal - protestou o ativista gay Frank Mugisha após a votação no Parlamento nesta sexta-feira.

O projeto de lei contra atos homossexuais foi condenado por líderes mundiais quando começou a ser debatido em 2009. O presidente dos EUA, Barack Obama, classificou-o de “odioso”, e alguns países doadores têm sugerido que poderiam cortar a ajuda a Uganda caso não respeite os direitos dos gays.

Disponível em http://oglobo.globo.com/mundo/parlamento-de-uganda-aprova-lei-contra-uso-de-minissaias-11122455. Acesso em 04 mar 2014.

quinta-feira, 6 de março de 2014

O quebra-cabeça evolutivo da homossexualidade

William Kremer
23 de fevereiro, 2014

Na música Same Love, que se tornou um hino não-oficial de apoio ao casamento gay nos Estados Unidos, a dupla Macklemore e Ryan Lewis, vencedores do prêmio Grammy de Melhor Artista Revelação na última edição do prêmio musical, ironiza quem diz acreditar que a homossexualidade é fruto de uma "escolha".

A opinião científica parece estar do lado deles. Desde o início da década de 90, pesquisadores vêm mostrando que a homossexualidade é mais comum em irmãos e parentes da mesma linhagem materna.

Segundo esses cientistas, isso se deve a um fator genético. Também relevantes – apesar de ainda não amplamente comprovadas – são as pesquisas que identificam diferenças fisiológicas nos cérebros de heterossexuais e de gays, assim como os estudos que afirmam que o comportamento homossexual também está presente em animais.

Mas, como gays e lésbicas têm normalmente menos filhos biológicos do que os heterossexuais, uma questão continua intrigando pesquisadores de todo o mundo.

"Se a homossexualidade masculina, por exemplo, é um traço genético, como teria perdurado ao longo do tempo se os indíviduos que carregam 'esses genes' não se reproduzem?", indaga o pesquisador Paul Vasey, da Universidade de Lethbridge, no Canadá.

"Trata-se de um paradoxo do ponto de vista evolucionário."

Muitas das teorias envolvem pesquisas realizadas sobre a homossexualidade masculina. A evolução do lesbianismo permanece muito pouco estudada. Ela pode ser semelhante ou muito diferente.

Os cientistas ainda não sabem a resposta para esse quebra-cabeça darwinista, mas há muitas teorias em jogo e é possível que diferentes mecanismos atuem em cada pessoa.

Conheça algumas das principais teorias a respeito do assunto:

Genes que definem a homossexualidade também ajudam na reprodução

O alelo – um grupo de genes - que às vezes influencia a orientação homossexual também pode trazer vantagens reprodutivas. Isso compensaria a falta de reprodução da população gay e asseguraria a continuação dessa característica, uma vez que não-homossexuais também poderiam herdar esses genes e transmiti-los a seus descendentes.

Há duas ou mais maneiras pelas quais esta transmissão dos genes pode acontecer. Uma possibilidade é que este grupo de genes crie um traço psicológico que torne os homens heterossexuais mais atraentes para mulheres, ou as mulheres heterossexuais mais atraentes para os homens.

"Sabemos que as mulheres tendem a gostar de traços e comportamentos mais femininos nos homens e isso pode estar associado com coisas como o talento para ser pai e a empatia", diz Qazi Rahman, coautor do livro Born Gay; The Psychobiology of Sex Orientation ("Nascido Gay, A Psicobiologia da Orientação Sexual", em tradução livre).

De acordo com essa teoria, uma quantidade pequena desses alelos aumentaria as chances de sucesso reprodutivo do portador desses genes, porque o torna atraente para o sexo oposto.

De vez em quando, um membro da família recebe uma "porção" maior destes genes, que se reflete na sua orientação sexual. Mas porque este alelo traz vantagens reprodutivas, ele permanece no DNA humano através das gerações.

Gays seriam 'ajudantes no ninho'

Alguns pesquisadores acreditam que, para entender a evolução dos homossexuais, é preciso observar qual é o papel que os gays têm nas sociedades humanas.

A pesquisa de Paul Vasey em Samoa, na Polinésia, baseou-se na teoria da seleção de parentesco ou hipótese do "ajudante no ninho".

A ideia é que os homossexuais compensariam a falta de filhos ao promover a aptidão reprodutiva de irmãos e irmãs, contribuindo financeiramente ou cuidando dos sobrinhos. Partes do código genético de um gay são compartilhadas com sobrinhas e sobrinhos e, segundo a teoria, os genes que determinam a orientação sexual também podem ser transmitidos.

Vasey ainda não mediu o quanto que ser homossexual aumenta a taxa de reprodução dos irmãos, mas comprovou que em Samoa, homens gays passam mais tempo fazendo "atividades de tio" do que homens heterossexuais.

Atividade homossexual em animais

  • Cerca de 400 espécies têm atividade homossexual, incluindo os macacos bonobos (machos e fêmeas), que são parentes próximos dos humanos.
  • Em alguns casos há razões reprodutivas. Os peixes machos da família Goodeidae, por exemplo, imitam fêmeas para enganar os rivais.
  • A preferência de longo prazo por parceiros do mesmo sexo é rara entre os animais, mas 6% dos carneiros-selvagens machos (na foto) são, de fato, "gays".
  • Pesquisas sobre o comportamento animal ajudaram a anular as leis contra a sodomia no Texas - mesmo assim, os cientistas ressaltam que a homossexualidade humana pode ser muito diferente da animal.

Fonte: Artigo "Same-sex sexual behavior and evolution", de Nathan Bailey e Marlene Zuk, napublicação Trends in Ecology and Evolution.

"Ninguém ficou mais surpreso que eu", disse Vasey sobre suas descobertas. Seu laboratório já havia comprovado que homens gays no Japão não eram mais atenciosos ou generosos com seus sobrinhos e sobrinhas do que homens e mulheres heterossexuais sem filhos. O mesmo resultado foi encontrado na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e no Canadá.

Vasey acredita que o resultado em Samoa foi diferente porque os homens que ele estudou lá eram diferentes. Ele pesquisou os fa'afafine, que se identificam como um terceiro gênero, vestindo-se como mulheres e tendo relações sexuais com homens que se consideram heterossexuais. Os fa'afafine são parte de um grupo transgênero e não gostam de ser chamados de gays nem de homossexuais.

O pesquisador especulam que parte da razão pela qual os fa'afafine são mais atenciosos com seus sobrinhos e sobrinhas é sua aceitação na cultura de Samoa, em comparação com os gays no Ocidente e no Japão. A lógica é a de que gays que são rejeitados tendem a ajudar menos os familiares a criarem seus filhos.

Mas ele também acredita que há alguma coisa no estilo de vida dos fa'afafine que os torna mais propensos a serem carinhosos com seus sobrinhos e sobrinhas. E especula que encontrará resultados semelhantes em outros grupos de "terceiro gênero" ao redor do mundo.

Se isso for comprovado, a teoria do "ajudante no ninho" pode explicar em parte como um traço genético da atração pelo mesmo sexo não foi excluído dos humanos ao longo da evolução.

Mesmo com uma menor capacidade de se reproduzir, homossexuais que se identificam como um "terceiro gênero" ajudariam a aumentar a capacidade reprodutiva de seus parentes heterossexuais, ao assumirem cuidados com as crianças.

Homossexuais também têm filhos

Nos Estados Unidos, cerca de 37% da população lésbica, gay, bissexual e transsexual Cliquetêm filhos, 60% dos quais são biológicos. De acordo com o Instituto Williams, casais gays com filhos têm, em média, dois.

Estes números podem não ser altos o suficiente para sustentar que traços genéticos específicos ao grupo sejam passados adiante, mas o biólogo evolucionista Jeremy Yoder lembra que durante boa parte da história moderna, pessoas gays não viveram vidas abertamente homossexuais.

Obrigadas pela sociedade a casarem e terem filhos, suas taxas reprodutivas devem ter sido mais altas do que são hoje.

Medir a quantidade de gays que têm filhos também depende de como você define "ser gay". Muitos dos homens heterossexuais que têm relações sexuais com os fa'afafine em Samoa casam-se com mulheres e têm filhos.

"A categoria da atração pelo mesmo sexo se torna muito difusa quando temos uma perspectiva multicultural", diz Joan Roughgarden, um biólogo evolucionista na Universidade do Havaí.

No Ocidente há indícios de que muitas pessoas passam por uma fase de atividade homossexual, mesmo que sejam principalmente heterossexuais.
Isso tornaria mais complicado afirmar que somente pais que levam uma vida homossexual poderiam passar "genes gays" adiante.

Nos anos 1940, o pesquisador de sexo americano Alfred Kinsey descobriu que apenas 4% dos homens brancos eram exclusivamente gays após a adolescência, mas 10% dos homens tiveram um período de atividade gay de 3 anos e 37% tiveram relações com alguém do mesmo sexo em algum momento de suas vidas.

Uma pesquisa nacional de atitudes em relação ao sexo feita na Grã-Bretanha em 2013 apresentou número mais baixos. Cerca de 16% das mulheres disseram ter tido alguma experiência sexual com outra mulher (8% tiveram contato genital) e 7% dos homens disseram ter tido alguma experiência sexual com um homem (5% tiveram contato genital).

Mas a maior parte dos cientistas pesquisando a evolução gay estão mais interessados na existência de um padrão de desejo interno contínuo. Identificar-se como gay ou heterossexual não é tão importante, nem ter relações homossexuais com maior ou menor frequência.

"A identidade sexual e os comportamentos sexuais não são boas medidas da orientação sexual. Os sentimentos sexuais, sim", diz Paul Vasey.

Nem tudo está no DNA

Qazi Rahmandiz afirma que grupos de genes que determinam a atração pelo mesmo sexo só explicam parte da variedade da sexualidade humana.

Outros fatores biológicos que variam naturalmente também interferem. Um em cada sete homens, por exemplo, devem sua sexualidade ao "Efeito Big Brother": observou-se que garotos com irmãos mais velhos têm maiores chances de serem gays - cada irmão mais velho aumentaria as chances de homossexualidade em cerca de um terço.

Ainda não se sabe o porquê, mas uma teoria é a de que a cada gravidez de um bebê do sexo masculino, o corpo da mulher desenvolve uma reação imunológica a proteínas que tem um papel no desenvolvimento do cérebro masculino.

Como isto só interfere de alguma forma no bebê depois que muitos irmãos já nasceram - a maioria dos quais serão heterossexuais e terão filhos - esta peculiaridade pré-natal não foi descartada pela evolução.

A exposição a níveis incomuns de hormônios antes do nascimento também pode afetar a sexualidade. Por exemplo, fetos de fêmeas expostos a altos níveis de testosterona antes do nascimento demonstram altos índices de lesbianismo depois.

"A identidade sexual e os comportamentos sexuais não são boas medidas da orientação sexual. Os sentimentos sexuais, sim."
Paul Vasey

Estudos mostram que mulheres lésbicas e homens "machões" tem uma diferença no comprimento dos dedos indicador e anular - que demonstra a exposição pré-natal à testosterona. Em lésbicas "femininas" esta diferença é muito menor.

Os gêmeos idênticos também provocam questionamentos. Pesquisas descobriram que se um gêmeo é gay, há cerca de 20% de chance de que seu gêmeo idêntico tenha a mesma orientação sexual. Apesar de a probabilidade ser maior do que o normal, ainda é pequena considerando que os dois tem o mesmo código genético.

William Rice, da Universidade da Califórnia Santa Barbara, diz que pode ser possível explicar isso olhando não para nosso código genético, mas para o modo como ele é processado. Rice e seus colegas se referem ao campo emergente da epigenética, que estuda como partes do nosso DNA são "ligadas" ou "desligadas".

Para Qazi Rahman, é a mídia que simplifica excessivamente as teorias genéticas da sexualidade, com suas reportagens sobre a descoberta do "gene gay". Ele acredita que a sexualidade envolve dezenas ou centenas de grupos de genes que provavelmente levaremos décadas até descobrir.


Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/02/140219_quebra_cabeca_evolucao_homossexualidade_lgb.shtml. Acesso em 26 fev 2014.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Violência à mulher é problema cultural; especialistas cobram campanha

Thais Sabino
08 de Outubro de 2013

Adriana Tamashiro, 31 anos, foi espancada pelo parceiro a 20 dias do casamento. M. R. P., 26 anos, foi agredida grávida de seis meses pelo marido. T. N. S., 47 anos, passou 20 anos sofrendo agressões verbais e físicas dentro da própria casa. Elas representam pequena parcela das mulheres que sofrem violência praticada pelo companheiro. Recentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) concluiu em um estudo que a Lei Maria da Penha não reduziu a mortalidade do gênero. Um dos motivos, segundo especialistas entrevistados pelo Terra, é a omissão à denúncia de algumas mulheres, mas o principal é que “a lei não tem varinha de condão, é preciso fazer campanha por uma cultura de paz”, afirmou a psicóloga Roseli Goffman.

Para a também conselheira do Conselho Federal de Psicologia, a lei não pode levar a responsabilidade por um problema de comportamento secular do Brasil. “Ela (Lei Maria da Penha) é um avanço e tem que continuar. O que a gente precisa é trabalhar são outras ferramentas para a mudança da mentalidade e imaginário social”, disse.  Em uma sociedade à qual Roseli classifica como “falocêntrica” e enraizada pelo ódio e machismo - “ocupamos o sétimo lugar no feminicídio”, comentou – precisa de uma “campanha nacional pela diminuição da violência contra a mulher”, disse a psicóloga Janaína Leslao.

Para Janaína, que atua na causa há anos, assim como há um trabalho grande de combate à violência no trânsito, é preciso atuar reeducação comportamental de homens e mulheres. “A gente não vê uma campanha de massa, na mesma proporção que a de trânsito, pela mudança da atitude dos homens em relação às mulheres, por uma convivência pacífica e igualdade de direitos”, criticou. A violência doméstica não é um problema de casal, mas, sim, social. “Devemos meter a colher em violência contra a mulher”, acrescentou.

A gente não vê uma campanha de massa, na mesma proporção que a de trânsito, pela mudança da atitude dos homens em relação às mulheres
Janaína Leslao
Psicóloga

A designer Adriana foi espancada no próprio apartamento. “Ele quebrou metade da casa, a vizinha ficou em pânico e ligou para o porteiro, mas ele disse que não podia fazer nada se eu não pedisse ajuda pelo interfone”, contou sobre o ocorrido do dia 18/9. Ela tem apenas alguns flashes de memória do dia em que, depois de uma briga, o ex-noivo a seguiu inconformado com o fim do relacionamento. “Ele me chutava, me dava socos, minha vizinha ouviu ele me jogar na parede e gritar que ia me matar”, relatou.

O casal estava junto há pouco tempo, tudo foi muito intenso, segundo ela: estavam juntos há dois meses e já moravam juntos. Mesmo assim, após um primeiro mês “lindo”, na primeira discussão ela percebeu a agressividade mais intensa do parceiro. Na segunda, vieram as agressões verbais que a motivaram a desistir do casamento. “Talvez tenha sido ingenuidade minha imaginar que ele não seria capaz de me levantar a mão”, disse. Com o apartamento todo ensanguentado, o ex-noivo tentou deixar o prédio, mas foi impedido pelo porteiro. Adriana chamou a polícia, ele foi preso em flagrante, pagou fiança e está em liberdade.

Casos como o da dona de casa M. R. P. são bastante comuns, segundo a delegada Celi Paulino Carlota. M. R. P. namorou por anos na adolescência com o agressor, ficou um tempo separada dele e depois o casal decidiu morar junto, em 2010. “Nos primeiros meses ficou tudo bem, depois, qualquer problema que surgia ele não queria conversar, começava a brigar e a me ofender”, lembrou. Nas situações eles se separavam, mas meses depois voltavam a morar juntos. “Ele me humilhava, falava que eu não prestava para nada, que eu era um lixo e nunca ia ter nada na vida”, relatou M. R. P.

Recentemente, a discussão foi mais além: depois dos xingamentos usuais, ele a jogou no chão, bateu no rosto, puxou o cabelo e apertou o pescoço. Quando a polícia chegou, chamada pelos vizinhos, o agressor já estava indo embora e ela preferiu não denunciar. “Falei que estava tudo bem, porque já vou passar pelo processo de divisão de bens e pensão, se ele perde o emprego como vai ajudar eu e a minha filha?”, justificou. Segundo ela, os policiais questionaram os arranhões no rosto e pescoço dela, mas ela insistiu que não havia ocorrido agressão.

Elas sempre querem dar uma chance, é uma coisa maternal, falam que não querem prejudicar o pai dos filhos, que ele perca o emprego ou vá preso
Celi Paulino Carlota
Delegada titular da 1ª Delegacia da Mulher

A segunda chance

Celi contou que as mulheres vítimas de lesão corporal, ameaças e ofensas chegam à delegacia abaladas em dúvida se devem denunciar ou não. “Elas sempre querem dar uma chance, é uma coisa maternal, falam que não querem prejudicar o pai dos filhos, que ele perca o emprego ou vá preso”, disse a delegada. A orientação da profissional, no entanto, é que a impunidade pode levar à morte da vítima e das pessoas próximas também. Segundo ela, o agressor passa por um período de arrependimento, promete melhoras, mas volta cometer os erros. Ela está recebendo casos em que a violência se estende aos filhos com mais frequência.

A missionária norte-americana T. N. S. conheceu um advogado brasileiro há cerca de 20 anos nos EUA, eles se apaixonaram, se casaram e se mudaram para o Brasil. “Foram mais de 15 anos de violência, ele destruiu a minha alma”, contou. T. N. S. sofria humilhações em público, ouvia que não servia para nada e que mulher era só para sexo. A primeira agressão física veio com quase dois anos de casamento: um soco, uma chave de braço e puxões nos cabelos. Depois da primeira vez, a situação começou a acontecer com mais frequência e, grávida da terceira filha, ele rompeu a bolsa de água de T. N. S. com um soco na barriga dela.

Foram mais de 15 anos de violência, ele destruiu a minha alma
T.N.S (Vítima)

Ao todo, eles se separaram três vezes, mas os pedidos de desculpas do agressor sempre convenciam T. N. S. A última briga fez com que ela ameaçasse denunciá-lo. Como resposta, o agressor disse que tiraria a guarda dos quatro filhos – três meninas e um menino – de T. N. S. Ele conseguiu. Segundo ela, o ex-marido juntou um laudo médico falso que alegava a insanidade mental da mulher e obteve o direito de ficar com os filhos. “A culpa é minha porque eu demorei a tomar uma posição. Se eu tivesse denunciado antes não perderia 20 anos da minha vida e as minhas crianças. Quanto mais tempo você fica na situação, mais coloca as pessoas em perigo”, afirmou T. N. S.

A denúncia

Um das razões para T. N. S. não ir à polícia era o medo de punição. Ela desconhecia a Lei Maria da Penha, de proteção às mulheres contra a violência doméstica. A lei, em vigência desde 2006, prevê medidas protetivas como o impedimento do agressor de se aproximar da vítima, fazer contato telefônico ou pela internet sob o risco de prisão, além de a mulher poder pedir o afastamento do companheiro do lar e alimentos provisórios. “Ela consegue tudo isso já na delegacia”, garantiu Celi. A denúncia também pode ser feita diante de ameaças e agressões verbais, acrescentou.

O primeiro passo após uma agressão física é procurar um pronto-socorro caso existam ferimentos. Depois, a vítima deve ir até à delegacia da mulher e abrir o boletim de ocorrência. Foi o que fez Adriana. Logo após a polícia prender o agressor, ela foi para o hospital e seguiu ao Instituto Médico Legal para fazer exames. Na delegacia, ela estava certa de que não deixaria a violência passar impune, abriu um boletim de ocorrência e agora aguarda ser chamada para depor e fazer o reconhecimento.

Segundo a delegada, as mulheres que buscam ajuda são cada vez mais jovens e, de acordo com Janaína, cerca de 90% são agredidas por uma pessoa íntima com quem se estabeleceu em algum momento uma relação de afeto. Além do apoio policial e jurídico, segundo Janaína, centros de atendimento à mulher ajudam na parte psicológica e recuperação da autoestima. As instituições mantêm sigilo e possuem equipe multidisciplinar, completou.


Disponível em http://mulher.terra.com.br/vida-a-dois/violencia-a-mulher-e-problema-cultural-especialistas-cobram-campanha,93c1414a7cf71410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html. Acesso em 10 fev 2014.