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quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Para que, de fato, serve o sonho?

Sidarta Ribeiro
maio de 2014


Para entender para que serve o sonho, necessitamos compreender algo básico: o homem contemporâneo tende a esquivar-se de todo risco. Em vez de caçadas perigosas e coletas incertas, fazemos visitas regulares ao supermercado. No lugar de turnos de guarda noturna alternados para evitar um ataque traiçoeiro na madrugada, temos a segurança dos muros, portas trancadas e alarmes. Em lugar de pedras e peles, dormimos sobre colchões anatômicos. Em vez da dificuldade de encontrar parceiros sexuais férteis que não sejam parentes próximos, apenas o risco de levar um não de uma pessoa desconhecida numa festa ou bar.

Se os sonhos alguma vez foram essenciais para nossa sobrevivência, já não o são. Isso não quer dizer, entretanto, que os sonhos não mais desempenhem um papel cognitivo. Para esclarecer que papel é esse, é preciso em primeiro lugar desconstruir a noção de que os sonhos refletem algum tipo de processamento neuronal aleatório. Embora regiões profundas do cérebro de fato promovam durante o sono REM um bombardeio elétrico aparentemente desorganizado do córtex cerebral, há bastante evidência de que os padrões de ativação cortical resultantes desse processo reverberam memórias adquiridas durante a vigília.

Mesmo que não soubéssemos disso, bastaria um pouco de reflexão e introspecção para refutar a teoria aleatória dos sonhos. A ocorrência múltipla de um mesmo sonho é um fenômeno detectável, ainda que ocasional, na experiência da maior parte das pessoas. Pesadelos repetitivos são sintomas bem estabelecidos do transtorno de estresse pós-traumático, que acomete indivíduos submetidos a eventos excessivamente violentos. Dada a imensa quantidade de conexões neuronais existentes no cérebro, seria impossível ter sonhos repetitivos se eles fossem o produto de ativação ao acaso dessas conexões.

Além disso, sonho e sono REM não são o mesmo fenômeno e sequer têm bases neurais idênticas. Temos certeza disso porque existem pacientes neurológicos que perdem a capacidade de sonhar mas não deixam de apresentar o sono REM. Nesse caso, as regiões lesionadas, descritas por Mark Solms, são circuitos relacionados com a motivação para receber recompensas e evitar punições. Essas estruturas utilizam o neurotransmissor dopamina para modular a atividade de regiões relacionadas à memória, emoção e percepção. Sonhar com algo na vigília é o mesmo que desejar – e é exatamente de desejo que são feitos os sonhos. Curiosamente, são os níveis de dopamina que, em experimentos com camundongos transgênicos, regulam a semelhança entre os padrões de atividade neural observados durante o sono REM e a vigília. Portanto, a ideia de que psicose é sonho, ridicularizada por décadas, também encontra apoio na neuroquímica moderna.

E ainda, ao contrário da teoria de que os sonhos são subproduto do sono sem função própria, prevalece cada vez mais a noção de que o sono e o sonho são cruciais para a consolidação e a reestruturação de memórias. Ambos os processos parecem ser dependentes da reverberação elétrica de padrões de atividade neural que ocorrem enquanto dormimos e representam memórias recém-adquiridas. Essa reverberação se beneficia da ausência de interferência sensorial durante o sono e resguarda o processamento mnemônico de perturbações ambientais. A reverberação é favorecida também pela ocorrência de oscilações neurais durante o sono sem sonhos, chamadas de ondas lentas. Os pesquisadores Lisa Marshall, Jan Born e colaboradores da Universidade de Lübeck, na Alemanha, demonstraram que é possível aumentar a taxa de aprendizado realizando estimulação elétrica de baixa frequên¬cia durante o sono de ondas lentas.

Em contrapartida, como venho demonstrando junto com outros grupos de pesquisa desde 1999, o sono REM parece ser fundamental para a fixação de longo prazo das memórias em circuitos neuronais específicos. Esse processo depende da ativação de genes capazes de promover modificações morfológicas e funcionais das células neurais. Tais genes são ativados durante a vigília quando algum aprendizado acontece e voltam a ser acionados durante os episódios de sono REM subsequentes. Como resultado, memórias evocadas por reverberação elétrica durante o sono de ondas lentas são consolidadas por reativação gênica durante o sono REM. Essa reativação cíclica das memórias em diferentes fases do sono e da vigília vai paulatinamente fortalecendo os caminhos neurais mais importantes para a sobrevivência do indivíduo, enquanto as memórias inúteis são gradativamente esquecidas.

Experimentos eletrofisiológicos e moleculares mostram ainda que as memórias migram de um lugar para outro do cérebro, sofrendo importantes transformações com o passar do tempo. Meu laboratório tem mostrado que áreas do cérebro envolvidas na estocagem temporária de informações, como o hipocampo, apresentam reverberação elétrica e reativação gênica apenas durante os primeiros episódios de sono após o aprendizado. Em contraste, áreas do córtex envolvidas na armazenagem duradoura das memórias apresentam persistência desses fenômenos por muitos episódios de sono após a aquisição de uma nova memória.


Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/para_que_de_fato_serve_o_sonho_.html. Acesso em 01 dez 2014.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A realização de um sonho

Saulo Pithan 
quinta | 19/01/2012 07:42:00

Desde o dia 16 de dezembro do ano passado, a autônoma Fabiane da Rosa Luiz, de 32 anos diz estar vivendo uma nova vida. Aquilo que ela prefere chamar de “nascer de novo” começou desde que ela se deitou em uma mesa cirúrgica do Hospital das Clínicas, em Porto Alegre (RS), para se submeter a um procedimento pouco comum, que durou mais de quatro horas.

Do centro cirúrgico, ela saiu diferente: sem os testículos e o pênis. Fabiane, que faz questão de esquecer o nome de batismo – Fábio da Rosa Luiz - conseguiu depois de muito esforço realizar o seu maior sonho. Passou pela cirurgia de extração dos órgãos sexuais masculinos.
Os procedimentos cirúrgicos constituíram o passo mais contundente da transformação de Fábio em Fabiane, primeiro transexual masculino do Vale do Araranguá a realizar uma cirurgia de mudança de sexo custeada pelo Sistema Único de Saúde. Essa prática já existe desde 2008 no Brasil, mas apenas agora ela conseguiu realizar o sonho de se tornar mulher.

Para Fabiane, a realização da cirurgia representa o último ato de uma peça ruim em que ela encarna o personagem errado. "Desde criança, me entendo como menina", diz. Cedo, refutou o nome Fábio: preferia Fabiane. Nascida em Araranguá, na pequena comunidade de Rio dos Anjos, teve que esconder e reprimir todos os seus desejos. “Sentia atração por homens. Nunca gostei de gays. Eu não conseguia gostar do meu órgão sexual e quando tinha sete anos de idade já sabia que algo estava errado comigo. Eu não aceitava ter o corpo de menino, tendo alma e gostos de menina,” conta.

No primeiro dia de aula, foi parar na fila das meninas. "Eu não entendia por que meu lugar era junto aos meninos". A escola, aliás, foi o principal palco do descompasso com o corpo nos primeiros anos. Nas aulas de educação física, o garoto queria compor o time das meninas na prática de modalidades esportivas. O futebol, exclusividade masculina, ela deixava de lado e preferia ficar sentada no canto ao ter que correr atrás da bola. “A professora mesmo assim insistia em fazer eu jogar. Então sempre era alvo de deboche dos colegas e todos riam do meu jeito feminino,” afirma.

O drama do personagem bipartido cresceu à medida que seu corpo se desenvolvia. A partir da adolescência, com as mudanças próprias da fase, tudo se complicou. Com uma amiga que na época trabalhava em uma farmácia, teve acesso a hormônios femininos, que afinaram a voz, e fizeram nascer pequenos mamilos. Sem a devida orientação médica, acabou impondo mais dor ao corpo que queria transformar. "Tomei doses excessivas de hormônios e sofri muito com isso. Eu sabia dos riscos que corria, mas a vontade de me tornar mulher era muito maior", diz.

Fabiane recorda que foi alvo de muito preconceito. Quando resolveu mudar-se com a mãe para Maracajá, após a morte do pai, teve que enfrentar outro terrível drama. Ao passar pelas ruas da pequena localidade de Vila Beatriz para ir ao trabalho, já aos 24 anos e com características femininas bem marcantes por conta das altas doses de hormônios que ingeria, era insultada e chegou a ser apedrejada por crianças na rua.

“Nunca vou me esquecer deste dia. Foi um dos mais tristes da minha vida. Eu voltava do trabalho e as crianças saíram correndo atrás de mim, chamando de maricona e jogando pedra brita. Obviamente que incentivadas pelos pais. Me senti um cão de rua e desde aquele dia, recebi um grande apoio de minha mãe e consegui adquirir confiança para seguir adiante e lutar pelo sonho de me transformar em uma mulher,” desabafa.

Transtorno, não doença

A incompatibilidade entre corpo e mente não é uma peculiaridade de Fabiane. Segundo ela, a incômoda sensação de ocupar a estrutura física errada é comum aos transexuais. Após permanecer por longos dois anos frequentando grupos de tratamento, sendo esta a primeira etapa do processo para a cirurgia, diz ter aprendido muito sobre o assunto. "A gente sente vergonha, constrangimento e, muitas vezes, não consegue nem ao menos saber quem na verdade é. Não é uma questão de comportamento sexual, mas de identidade de gênero. Trata-se de um transtorno de gênero, não uma doença", relata.

Para Fabiane, possuir órgãos masculinos era um transtorno. Cultivar seios, um desejo. É algo completamente distinto da homossexualidade. "Nela um homem, por exemplo, se aceita enquanto homem, mas seu desejo sexual recai sobre outro homem. Já o transexual não aceita o corpo que tem, não se vê refletido nele”, esclarece.

Esse é o perfil das centenas de transexuais que aguardam na fila de espera pela mudança no corpo. Fabiane diz que agradece a Deus por ter conseguido, mas conta que nada foi fácil. Depois de ter resolvido correr atrás do seu maior sonho, teve que enfrentar barreiras como a falta de esclarecimento do sistema de saúde local. Em Maracajá, por exemplo, nem os médicos da rede básica de saúde e nem psicólogos do município sabiam sobre os procedimentos. Foi depois de muito pesquisar na internet que conseguiu contato com o Hospital das Clínicas em Porto Alegre, para onde foi tentar a sorte.

Para conseguir emitir os laudos que autorizam a cirurgia bancada pelo SUS, teve que passar pelo centro de triagem em Porto Alegre, que é o único no Sul do país, fora ele existem apenas mais três. A emissão do laudo encerra um processo que se estende por dois anos, durante os quais as condições físicas, mentais, sentimentais e sociais do candidato à cirurgia são esquadrinhadas até semanalmente por psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e assistentes sociais.

O objetivo, segundo ela, é rastrear pistas que permitam prever casos em que o paciente não está preparado para o procedimento cirúrgico e tudo o que ele acarreta. Um diagnóstico errado de transexualismo pode, como é fácil prever, desencadear problemas irreversíveis e há até registros de suicídio.

Acompanhamento familiar

Em sua longa jornada rumo ao ato final, Fabiane não contou apenas com a companhia dos profissionais de saúde e assistência social. A seu lado, a mãe, os amigos e o atual companheiro, que prefere não revelar sua identidade. Eles estão juntos há pouco mais de dois anos. Aguardava com ansiedade pela cirurgia e não esconde que o procedimento trouxe alívio para ambos.

"Hoje, não somos vistos como um casal heterossexual, porque, em geral, as pessoas não compreendem o que é a transexualidade", diz. "Ela nasceu num corpo inadequado, e a cirurgia tirou dos ombros dela um peso desnecessário. Quando conheci, dentro do meu táxi, nunca imaginei que fosse um homem. Na verdade sempre a tratei como uma mulher, mas eu queria viver com uma mulher e a cirurgia me deu essa oportunidade. Tanto pra mim quanto pra ela".

Com o laudo do transexualismo em mãos, Fábio já deu entrada no processo para mudança de nome. Depois da aprovação por um juiz, passará oficialmente a se chamar Fabiane da Rosa Luiz. Por enquanto, a sensação de felicidade já é plena. “Tenho minha vida que sempre quis, um companheiro que amo, uma casa, e assim que estiver totalmente recuperada da cirurgia volto a trabalhar normalmente como toda mulher. Posso dizer que nasci de nova e depois de 32 anos vou conseguir a minha felicidade de volta", finaliza.

Disponível em <http://www.atribunanet.com/noticia/a-realizacao-de-um-sonho-74799>. Acesso em 19 jan 2012.